• 5 de junho de 2017

    Você, que não sei quem é

    – Mas eu queria uma mulher mais carinhosa sabe?

    – Sim, entendo, mas sempre vem com uma mais durona né?

    – É…

    – O que tem de seu nisso? É muita negligência sua consigo mesmo colocar essas várias escolhas apenas na mão do acaso.

    – Você tá certo… sabe… eu estava até pensando em uma professora que eu tive.

    – Hum…

    – Ela era mais durona, mas foi uma época bem boa pra mim.

    – Diferente das relações com as mulheres da sua família não é? Que ao mesmo tempo que te mimaram, não ajudaram você a se tornar um homem.

    – É verdade, é verdade…

    – Que tal parar de chorar então e assumir que você está escolhendo uma mulher para se tornar homem com ela?

     

    Uma das tarefas mais difíceis para os seres humanos é perceber a realidade tal como é. Esta tarefa se torna ainda mais complexa quando vai para o campo das relações humanas. Ao mesmo tempo se faz fundamental para termos bons relacionamentos.

    Toda relação humana é preenchida de maneira inconsciente com desejos, projeções e necessidades. Sempre que nos relacionamos com outra pessoa, esses fatores contribuem para criar a maneira pela qual vamos nos relacionar e ver o outro. A complexa tarefa de enxergar o que é “de fato” existe por causa dessas “interferências”. Coloco o termo entre aspas porque é impossível para os humanos se relacionarem sem isso, então, como fazer para “ver em verdade”?

    A tarefa inicial é perceber nossos desejos, necessidades e projeções. Não se trata de tentar eliminá-las, porque como disse antes, elas, simplesmente, existem. Pense: não há como ir completamente sem posse de nenhum desejo para uma relação. Se assim o fosse, não haveria necessidade da relação. Porém, existe uma diferença grande entre perceber o seu desejo e sabê-lo como “apenas o seu desejo” e achar que isso é um “dever do outro”. Esta diferença é o que nos ajuda a ver as pessoas e as relações tal como são.

    Enquanto a percepção é falha, a tendência da pessoa é “naturalizar” a sua versão dos fatos, ou seja, imaginar que todos pensam, querem e necessitam das mesmas coisas. Assim sendo, ao invés da pessoa dizer, por exemplo: “eu gosto de uma pessoa carinhosa”, ela reflete que “todas as relações humanas devem ter carinho”. Assim sendo, ao se relacionar com alguém que não é tão carinhoso, logo entende que “há algo errado”. Passa, com isso, a procurar onde está o “defeito”, a tentar entender porque aquela pessoa “não é carinhosa” (já que todos querem e devem ser assim).

    Damos ao outro um papel, atribuímos à ele comportamentos e até mesmo uma personalidade. Todos fazemos isso, sempre, nunca vamos deixar de fazê-lo. A questão é se o fazemos partindo daquilo que observamos no outro ou com base naquilo que queremos dele. Essa segunda forma de olhar o outro é o que causa tantos problemas nas relações. Não conseguimos compreender as motivações dos outros, olhamos elas a partir dos nossos olhos, dos nossos filtros.

    Se percebemos nossos desejos, projeções e necessidades, o próximo passo é olhar o outro e tentar extrair dele quem ele é. Usando o exemplo acima, o que é a “falta de carinho” do meu esposo(a)? Na verdade não é falta de carinho, é que ele expressa carinho fazendo coisas comigo e partilhando informações, mas ele não é de pegar no colo e fazer cafuné. Logo, a “falta de carinho”, não mais existe, o que existe é uma pessoa que expressa amor de forma distinta da minha.

    Esta percepção, no entanto, é muitas vezes mais dolorida que a frustração que temos com “a pessoa que não é carinhosa”. Porque ao vermos o outro sem nossos filtros passamos a nos ver sem estes filtros também. Assim sendo algumas escolhas que fazemos se tornam mais evidentes e aquilo que pensamos que era importante, passa a ser alvo de reflexão. Voltando ao caso da pessoa carinhosa, algumas pessoas querem alguém “carinhoso”, mas sempre estão em relações com pessoas que não são assim, o que acontece?

    Em muitos casos (e não em todos, obviamente) a pessoa deseja alguém que “lhe passe a mão na cabeça” e confunde isso com “carinho”. Quer, na verdade, manter-se pequeno e ter suas falhas com uma mãe ou pai super protetores do lado. Ao ver que escolhe alguém menos “carinhoso”, vê, na verdade, que escolhe alguém mais “pé no chão”. Que não vai ficar passando a mão na cabeça e sim, chamar para a ação adulta. Ao perceber isso no outro, percebe isso, também em si: um chamado para crescer disfarçado.

    Quando o outro pode ser o outro e eu posso ser eu a relação atinge uma nova forma. Agora, as pessoas passam a enxergarem elementos diferentes em si, no outro e na maneira de se relacionar. As brigas, então, se tornam mais sérias, pelo fato de que, agora, elas falam de algo real e não sobre as projeções. Quando digo, então, mais sérias, o que quero dizer é que se tornam mais verdadeiras. O caminho das relações é complexo, porém, penetrar nessa complexidade é aprender quem somos e o que queremos.

    Abraço

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