• 6 de abril de 2020

    A criança interior

    – Isso que você falou me fez lembrar de quando eu era pequeno.

    – Do que você lembrou?

    – Eu sempre me sentia deixado de lado… não era muito popular e as garotas não iam com a minha cara.

    – E como você se relaciona com essa imagem do passado?

    – Ah.. eu não gosto de olhar para isso.

     

    Todos temos um passado. A questão não é mudá-lo, mas aceitá-lo. É óbvio que a tarefa é difícil, principalmente quando ele envolve dor e rejeição. Mas ao mesmo tempo, esta tarefa é essencial, pois ao amar nossa história, também podemos nos amar.

    É algo difícil de ser compreendido, mas não precisamos gostar de algo para aceitá-lo. O ato de aceitar envolve apenas esta atitude, nada mais. Em geral, as pessoas me perguntam: “mas eu sofri lá” ou “eu não tinha nada de admirável”, como posso me aceitar? A aceitação não é restrita aquilo que é “bom” ou “bem-feito”. Ela é voltada à todas as coisas. A pergunta, na verdade, é: como você faz para não aceitar? Para realizar isso, precisamos negar quem fomos, buscar ardentemente um ideal de ego criado para suprimir quem fomos e o processo pelo qual fazemos isso é sempre doloroso.

    Pois para que isso seja possível, precisamos continuar nos tratando tal como fomos tratados um dia. Nesse sentido é que passamos de abusados a abusadores de nós mesmos. Se antes as “meninas da minha escola” me chamava de feio, agora faço isso sozinho e perpetuo a violência. Há uma perda quando aceitamos quem fomos, perdemos a prepotência de achar que poderemos mudar aquela situação. Isso é doloroso para muitas pessoas. Elas querem mudar algo, para não aceitar o que foi feito com elas – e o que elas continuam a fazer com si.

    Neste cenário é que falamos em “criança interior”. Não é que cada um tem uma criança que mora dentro de si, mas sim, que todos temos uma imagem de quem fomos. Assim como temos uma imagem de quem queremos ser e nos relacionamos com ela, também o fazemos com a criança que fomos, com nosso passado. Quando nos é possível acolher e amar quem fomos, tal como fomos, reconhecendo nossos acertos e erros, virtudes e defeitos, criamos uma imagem mais realista de quem somos e de quem poderemos ser.

    O desafio em relação à criança interior é reconhecê-la como um todo, de forma real e sem julgamentos morais. O senso de realismo transforma a relação. Se tentamos deixar nossa criança interior muito melhor do que ela foi, nos enganamos e criamos um passado de maravilhas mentirosas. Se continuamos nos julgando, mantemos a dureza com a qual fomos julgados e continuamos negando a nossa vida. Porém se entendemos que algumas coisas ocorreram porque ocorreram, e não por causa de como éramos, então algo muda.

    Se eu fui tímido e não tive namoradinhas no ensino fundamental, posso ver isso como uma perda. Perdi esta experiência, não a tive, vivi outra realidade. Não preciso criar uma história sobre quão ruim eu era para não ter tido uma namoradinha, apenas era tímido e como vários outros como eu, não namorei ninguém. Mas tiveram outras coisas que fiz, e essas também posso me relacionar com. Então o ponto da criança interior é conseguir ver quem ela de fato foi, sem endeusar ou denegrir, para, com isso poder ter uma relação real com o nosso passado.

    Abraço

     

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