• 20 de janeiro de 2020

    Essa tal liberdade

    – E vou perder minha liberdade desse jeito? Ah, pare, quem ela pensa que é!

    – “Perder a liberdade”?

    – Sim, vem me colocando regras! O que ela pensa.

    – Talvez, que esteja em uma relação.

    – Sim, mas ela não é minha dona.

    – Não, mas não me parece isso que ela está propondo.

    – Como não?! Querendo dizer que eu não posso mais fazer as minhas coisas como eu fazia antes.

    – Ela está dizendo isso, ou dizendo que em uma relação com ela, ela desejaria que as coisas fossem diferentes?

    – Se ela quer diferente, porque não procura outro cara?

    – Quem sabe você deveria usar da sua suposta liberdade e procurar outra mulher então?

    – Sim… mas… e se eu quiser ficar com ela?

    – Então vai ter que usar da sua liberdade para entender que com esta escolha vem estas consequências. E que é você quem está escolhendo isso para você. E não uma “pobre vítima” que está perdendo sua liberdade.

    Um dos temas que mais gosto de trabalhar é a liberdade. Esta palavra e as crenças que dela surgem tem sofrido grande deturpação, o que faz com que as pessoas se comportem de maneira a “parecer” livres, quando, na verdade, a liberdade é uma questão de “ser” livre. E em relação à este tema as aparências enganam e muito.

    Quase todas as pessoas para quem pergunto: “o que é liberdade?”, respondem: fazer o que eu quero, quando quero. Já discorri sobre o tema deixando claro que isso é uma grande confusão com outra palavra: onipotência. A liberdade não tem nada a ver com a competência para executar determinado desejo ou aspiração, mas sim em ser livre para buscar por isso. Assim sendo, a liberdade não pode ter a ver com “fazer tudo o que quero, quando quero” por um outro fator: quem faz tudo o que quer quando quer, não pode, de verdade escolher, logo não pode ser livre.

    Soa paradoxal dizer que quem faz tudo o que quer, quando quer não é livre? Pois é. Isso se deve à confusão que temos com a onipotência. Fazer tudo o que quer quando quer, envolve além da impotência, o impulso. Estas duas características sempre foram atribuídas aos deuses: poderosos e impulsivos. A impulsividade não faz de ninguém dono de sua escolha, mas sim, um servo dela. Com isso em mente, sabemos que para escolher de verdade é necessário o comprometimento. Liberdade e compromisso caminham de mãos dadas.

    Porém em uma sociedade de consumo, confunde-se a escolha da pessoa livre (que envolve compromisso), com a escolha impulsiva (que tem a ver com o consumismo). Neste caso as pessoas acham que ser livre é ficar escolhendo a toda hora o que lhe traz mais vantagens e ponto. Como num grande supermercado da vida onde você joga fora uma lata de relacionamento e a troca por outro com o preço mais barato (pague um, leve dois). Isso é a deturpação da liberdade, pois a foca no impulso e não no compromisso.

    Além disso o foco também está localizado no externo e nos prazeres, de forma exclusiva. Então o ato de escolher está ligado exclusivamente àquilo que está sendo oferecido. É óbvio que só podemos escolher com base naquilo que existe, porém, o interno também é algo que existe. Este é o caso de pessoas que inventaram o que existe hoje. Elas se dedicaram a criar carros, aviões e uma infinidade de coisas. Como elas não existiam antes, o que advém é que o compromisso foi com uma visão interna.

    Portanto, o conceito de liberdade que temos hoje enquanto cultura, nos aprisiona nos impulsos consumistas que tanto queremos ver satisfeitos apenas para atestar (com profundo pânico sempre negado) que estas escolhas não saciaram nossa alma (e nem poderiam, visto que não foram gestadas pela alma). Os existencialistas já colocaram que somos livres para escolher as prisões nas quais vamos viver. A escolha consumista é triste não pelo fato do excessivo uso do capital para investir em coisas, mas sim, no fato de que essas coisas não refletem nada da essência da pessoa que não as escolheu, apenas as pegou porque era “black friday”.

    Abraço

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