• 15 de maio de 2020

    O outro lado do egocentrismo

    – Mas ela nunca me deixa fazer o que eu quero.

    – Eu sei. O que sempre me pergunto é o que te faz se manter numa relação assim.

    – Como assim?

    – Ora, você é livre para sair, não?

    – Sim, mas… como vou fazer isso?

    – O que te faz não fazer?

    – Seria inadequado.

    – O que tem de inadequado em terminar um relacionamento que não está bom para nenhum dos dois lados?

    – Pensando assim, nada.

    – Agora, o que você sente quando você não faz o que quer?

    – Não me sinto bem.

    – E o que sente em relação à ela?

    – É como se eu estivesse fazendo algo por nós dois sabe?

    – Sim. E ela?

    – Ela não.

    – Então você faz algo por vocês e ela não. Em que lugar isso te coloca?

    – Não sei… talvez de mais preocupado do que ela.

     

    A imagem arquetípica do egocentrismo é uma pessoa que visa apenas o próprio lucro, alguém cuja gana por ter mais para si sempre faz com que alguém sofra no processo. Esta imagem porém, não esgota a variedade de comportamentos possíveis nos quais o egocêntrico se encontra.

    Um lado muito menos conhecido e apreciado trata daquele tipo de pessoa que assume muito as dores dos outros e tem mil e um dedos em dizer qualquer coisa para qualquer um. O típico “bom moço” ou “boa moça”, muitas vezes é, na verdade uma forma de egocentrismo que passa desapercebida ao nosso olhar. O caso espanta, justamente porque desconhecemos o que é um egocêntrico em primeiro lugar. A dinâmica é muito mais abrangente em termos de comportamentos, porque ela é uma dinâmica interna a princípio.

    Ocorre que a pessoa de alguma maneira se coloca em um papel central na vida. Em outras palavras, ela crê que os eventos do mundo tem uma conexão causal direta com ela, assim sendo, responsabiliza-se por estes eventos e pelas pessoas envolvidas. Assim sendo o egocentrismo é, na verdade, uma falha na percepção de importância e relevância que a pessoa possui no mundo. Pessoas com o comportamento típico da”boa pessoa” acreditam que todos os seus pequenos atos estão afetando o mundo de uma forma muito grande, quando, na verdade, o mundo nem está prestando-lhes atenção.

    O fato é duro e quando elas se percebem disso, negam veementemente o fato. É comum em consultório verem mais de uma vez evidências de que “podem relaxar”, pois as pessoas continuarão vivendo tranquilamente, mas elas não conseguem se desapegar. E porque não? No fundo são dois os motivos. O primeiro por um medo terrível de que alguma punição poderá surgir caso elas se tornem “irresponsáveis” (ou seja, façam aquilo que realmente querem fazer).

    O segundo – que está ligado ao primeiro – é que se elas fizerem aquilo que querem e perceberem que o “mundo segue”, terão que fazer algo que elas não querem fazer: lidar com a realidade de forma “desprotegida”. Explico: ocorre que o comportamento de “boa pessoa” não existe por acaso, de certa maneira a pessoa crê que ao comportar-se assim, receberá algo de bom no futuro. Os sapos engolidos se tornam, na cabeça dela, moedas de trocas futuras. Assim sendo, o investimento é grande e elas não querem abrir mão dele quando percebem que o mundo não fechou um negócio com elas.

    E é justamente este investimento do qual elas precisam abrir mão para se tornarem mais livres em suas vidas. A lógica de engolir um sapo para ter um retorno futuro não é causal e elas sofrem muito com isso. Ao mesmo tempo não querem abrir mão dessa forma de negociar com a vida e encontrar maneiras mais diretas, pois isso envolve expôr-se que é o verdadeiro medo de qualquer egocêntrico. Desejam que o mundo se comporte como eles querem para que eles não precisem ir se comportar no mundo.

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